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domingo, 8 de março de 2015

ESCREVER UM LIVRO OU CUIDAR DOS PAIS?

Diz a sabedoria popular que um homem só está completo quando planta uma árvore, escreve um livro e tem um filho.
O autor desse ditado deve ter sido um escritor. Criou um adágio para si próprio. O Tom Jobim poderia ter dito que o homem só está completo quando faz uma música. Um pastor da Teologia da Prosperidade diria que só está completo quando tiver casa e um carro na garagem. E assim por diante.
Eu mesmo, e milhões de pessoas, jamais vamos escrever um livro. Então, morreremos lamentando não ter sido uma pessoa completa?
Eu preservaria no ditado o plantio da árvore, que tanto bem traz à humanidade. Aliás, é bem mais fácil plantar árvore do que derrubar. Preservaria ter um filho. Também, é bem mais fácil fazer filho do que evitar. E mais gostoso. Evitar dá um trabalho danado!
Tiraria o livro. Escrever um bom poucos têm condições de fazer. Difícil mesmo é ler e entender os livros.
Colocaria como condição para se sentir completo cuidar dos pais quando eles estiverem velhinhos e não conseguirem mais se cuidar. Isso é um ciclo normal da vida.  O difícil é cuidar de pais que abandonaram ou maltrataram os filhos. Nesses casos, seria dispensável essa etapa. Mas fica faltando para completar o ciclo.
Cuidar dos pais é uma oportunidade que nem todos têm. Eles podem morrer cedo. Muitos deles querem ficar em suas próprias casas, não querem morar com filhos. Isso tem que ser respeitado na medida do possível. Na casa deles, reconhecem sua cadeira, sua TV, seu sofá, sua cama. Ficam mais tranquilos.
Uma pessoa cuidadora pode ficar com os idosos, mas a presença dos filhos diariamente é fundamental. E quando a cuidadora tem que sair, para férias ou outra coisa, o ideal é os filhos a substituírem. Uma oportunidade, não um castigo. Daí é que pode ou não haver a predominância do amor, da paciência, do respeito: o filho vira pai (ou mãe).  É preciso levar ao banheiro, fazer a higiene, dar banho, trocar a roupa, lavar, preparar a comida, cuidar dos remédios, etc. Se a mãe fez isso com a gente quando éramos pequenos, normal fazer o mesmo com ela.
Visitar os pais velhinhos, arrumadinhos, cheirosinhos, penteados e dizer que os ama é uma coisa. Cuidar 24 horas por dia é outra. Daí o amor verdadeiro se revela. A coisa mais importante que existe para quem tem demência são os cuidados da família e de pessoas próximas.
Meu pai e tios morreram muito cedo, pela vida que tiveram. A primeira pessoa que ficou velhinha na família foi minha mãe. Estamos tendo a experiência de lidar com a demência. Ela tem cuidadora, mas diariamente um filho vai uma ou mais vezes vê-la. Quando a cuidadora sai em férias, os filhos se revezam nos cuidados 24 horas por dia (à noite ela dorme bem).  Quanto aprendemos! E quanto vemos que ainda ficamos em débito com ela! Pelo pouco que  lhe fazemos, ela agradece e diz que está nos dando muito trabalho. Oferece comida, como se tivesse condições de cozinhar. Nós é que lhe preparamos as refeições. Pergunta se temos cobertas para dormir, se a cama está arrumada, etc.
Sem essa oportunidade, não completaríamos o ciclo da vida. Claro, numa visão particular minha, tão particular quanto quem disse que o ciclo se completa com escrever um livro.
Não tenho ideia de como será quando ela chegar ao estado avançado de demência. Daremos conta? Teremos o mesmo desprendimento e paciência?
Sabemos que ela, mesmo com dificuldade para reconhecer as pessoas, sente-se bem quando recebe o carinho de alguém.  Ela sente o prazer do momento, que é muito  importante. Apenas não tem a alegria de lembrar depois. Com certeza, algum registro bom permanece lá no fundo.  Fica bem quando conversamos com ela, quando sentamos ao seu lado no almoço.
  O médico Eben Alexander narra em livro uma experiência de quase-morte (EQM) que vivenciou  numa UTI. Quando voltou para esta vida, falou de como  foi importante para ele ter sempre um familiar segurando sua mão, como uma âncora, mesmo não sentindo. Imagine isso para quem está vivo, ainda que com demência. 
Cada um pode escolher três coisas, ou mais, ou menos, para se sentir completo. A de escrever um livro, principalmente, é muito pessoal. A de cuidar dos pais também.


angeloroman@terra.com.br   
No jornal:
http://www.ilustrado.com.br/jornal/ExibeNoticia.aspx?NotID=64359&Not=Escrever%20um%20livro%20ou%20cuidar%20dos%20pais?   

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