Na entrada da repartição
pública, um intimidador cartaz, bem à vista: "Código Penal, art. 331 - Desacatar
funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção,
de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa."
A funcionária, de óculos bem
grossos, atrás da escrivaninha, fala ao celular. Olha por cima dos óculos os
cidadãos que a estão esperando para serem atendidos, franzindo a testa. Terminada
a conversa, levanta-se vagarosamente e caminha até o balcão. De cara fechada, pergunta: "Quem chegou
primeiro?". Um se apresenta. Ela olha o relógio e pergunta "Que
é?", levantando o queixo. Logo
depois, mais dois funcionários entram no recinto, conversando animadamente. O
balcão cheio, mas eles ignoram.
Pois bem. Se alguém
reclamar, os funcionários vão considerar desacato. Pra isso mesmo está a
placa. Assim também acontece em postos
de saúde. O médico não comparece ao trabalho, os doentes estão desesperados.
Abordam o funcionário que os atende, reclamam exaltados da situação e... são
acusados de desacato. Qualquer coisa que desagrade o servidor pode ser interpretado como tal.
Ora, o cidadão tem o direito de
reclamar de mau atendimento, de desrespeito, pouco caso e de criticar atitudes dos funcionários públicos
no exercício de sua função.
Segundo a Convenção Americana de
Direitos Humanos, sobre o art. 331 mencionado nas placas de algumas repartições
"... tais leis não são compatíveis com a
Convenção porque se prestam ao abuso como um meio para silenciar ideias e
opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate, que é crítico para o
efetivo funcionamento das instituições democráticas." Mais: "As
leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários
públicos do que aos cidadãos privados"
Felizmente, alguns tribunais
têm entendido que "não se configura [desacato] quando a
manifestação corresponde a um desabafo ou crítica ao exercício da função."
Abuso de autoridade gera desacato, ou o contrário?
Desacato é uma das
condutas mais alegadas pela polícia para justificar o abuso de autoridade. Além
disso, confunde-se, muitas vezes, desobediência com desacato. Se um cidadão não
atende a uma ordem, está desobedecendo não desacatando.
Vimos na mídia recentemente a história de um juiz de direito sem
carteira de habilitação que conduzia veículo sem placa. Ao ser abordado por uma
policial, identificou-se como magistrado, discutiram e ele deu voz de prisão a
ela. O juiz acusou-a de desacato. Como pode ter havido desacato se ele não
estava no exercício de sua função? Ela moveu ação contra o juiz. Não só foi
negado o pedido, mas, mesmo sem qualquer processo do magistrado, foi condenada
a pagar R$ 5 mil como indenização por
danos morais. Diz o despacho: “Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou
ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a
própria magistratura e tudo o que ela representa”. Desafiou ? ? ? Juiz pode andar sem habilitação e com carro sem placa?
Não teria havido desacato do juiz à policial? Ela estava na função pública. Houve
abuso de autoridade dela? Houve abuso de poder do magistrado?
Sem dúvida, o desacato é comum,
principalmente praticado por quem usa de "carteiradas", que, lamentavelmente,
funcionam.
Felizmente, o novo Código Penal que está sendo discutindo no
Congresso (até quando?), prevê a exclusão do artigo exibido nos cartazes. Se se sentir
ofendido, o servidor pode processar por injúria.
Enquanto
houver o corporativismo nos diversos órgãos públicos e a impunidade, o abuso de
autoridade vai continuar: policial matando inocente, juiz se sentindo um deus,
funcionário maltratando usuários nos postos de saúde e em outros órgãos
públicos...
angeloroman@terra.com.br
No jornal:
http://www.ilustrado.com.br/jornal/ExibeNoticia.aspx?NotID=63578&Not=PROTEGIDOS%20PELO%20MEDO
No jornal:
http://www.ilustrado.com.br/jornal/ExibeNoticia.aspx?NotID=63578&Not=PROTEGIDOS%20PELO%20MEDO
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