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domingo, 1 de fevereiro de 2015

PROTEGIDOS PELO MEDO

Na entrada da repartição pública, um intimidador cartaz, bem à vista: "Código Penal, art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa."

A funcionária, de óculos bem grossos, atrás da escrivaninha, fala ao celular. Olha por cima dos óculos os cidadãos que a estão esperando para serem atendidos, franzindo a testa. Terminada a conversa, levanta-se vagarosamente e caminha até o balcão.  De cara fechada, pergunta: "Quem chegou primeiro?". Um se apresenta. Ela olha o relógio e pergunta "Que é?", levantando o queixo.  Logo depois, mais dois funcionários entram no recinto, conversando animadamente. O balcão cheio, mas eles ignoram.

Pois bem. Se alguém reclamar, os funcionários vão considerar desacato. Pra isso mesmo está a placa.  Assim também acontece em postos de saúde. O médico não comparece ao trabalho, os doentes estão desesperados. Abordam o funcionário que os atende, reclamam exaltados da situação e... são acusados de desacato. Qualquer coisa que desagrade o servidor pode ser interpretado como tal.

Ora, o cidadão tem o direito de reclamar de mau atendimento, de desrespeito, pouco caso e  de criticar atitudes dos funcionários públicos no exercício de sua função.

Segundo a Convenção Americana de Direitos Humanos, sobre o art. 331 mencionado nas placas de algumas repartições "... tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate, que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas." Mais: "As leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados"

Felizmente, alguns tribunais têm entendido que "não se configura [desacato] quando a manifestação corresponde a um desabafo ou crítica ao exercício da função."

Abuso de autoridade gera desacato, ou o contrário? Desacato é uma das condutas mais alegadas pela polícia para justificar o abuso de autoridade. Além disso, confunde-se, muitas vezes, desobediência com desacato. Se um cidadão não atende a uma ordem, está desobedecendo não desacatando.

Vimos na mídia recentemente a história de um juiz de direito sem carteira de habilitação que conduzia veículo sem placa. Ao ser abordado por uma policial, identificou-se como magistrado, discutiram e ele deu voz de prisão a ela. O juiz acusou-a de desacato. Como pode ter havido desacato se ele não estava no exercício de sua função? Ela moveu ação contra o juiz. Não só foi negado o pedido, mas, mesmo sem qualquer processo do magistrado, foi condenada a pagar R$ 5 mil  como indenização por danos morais. Diz o despacho:  “Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa”. Desafiou ? ? ? Juiz pode andar sem habilitação e com carro sem placa? Não teria havido desacato do juiz à policial? Ela estava na função pública. Houve abuso de autoridade dela? Houve abuso de poder do magistrado?

Sem dúvida, o desacato é comum, principalmente praticado por quem usa de "carteiradas", que, lamentavelmente, funcionam.

Felizmente, o novo Código Penal que está sendo discutindo no Congresso (até quando?), prevê a exclusão do artigo exibido nos cartazes. Se se sentir ofendido, o servidor pode processar por injúria.

Enquanto houver o corporativismo nos diversos órgãos públicos e a impunidade, o abuso de autoridade vai continuar: policial matando inocente, juiz se sentindo um deus, funcionário maltratando usuários nos postos de saúde e em outros órgãos públicos...

angeloroman@terra.com.br

No jornal:
http://www.ilustrado.com.br/jornal/ExibeNoticia.aspx?NotID=63578&Not=PROTEGIDOS%20PELO%20MEDO

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