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domingo, 9 de novembro de 2014

A ARTE DE NÃO LER


"No que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante"

Senso comum: "Quem lê escreve bem". "Quem lê sabe das coisas".

Contraponto (de Schopenhauer): "Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos seu processo mental. Trata-se de um caso semelhante ao do aluno que, ao aprender a escrever, traça com a pena as linhas que o professor fez com o lápis". 
 
Quando eu era professor universitário, o coordenador do curso de Jornalismo considerava a leitura de livros quase igual ao ar que respiramos. Um exagero, pelas variáveis que envolvem o ato de ler. Ele até fazia julgamento sobre as pessoas em função de leitura de livros. Eram comuns seus comentários como "Até quem leu só dois livros entende isso!" quando numa discussão. Como se o pensamento estivesse diretamente ligado ao número de livros lidos. E forçava, com o uso de notas, que os alunos lessem. Não o que preferissem, mas os livros listados pela escola. Só que, quanto mais se é obrigado a ler, menos se pensa. Sobre arte e literatura, nota dez para o coordenador. Erudição não lhe faltava.  Gostava de se reunir com colegas e ficar falando de livros e de filmes. Pensamento crítico sobre o mundo, nota zero.

Segundo Arthur Schopenhauer, "muitos eruditos leram até ficar estúpidos". Pois é. Para o filósofo, aquele que lê muito perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria.

Para o pedagogo Rubem Alves, a escola deve ensinar o prazer de ler. Forçar pode dar algum resultado, mas não desenvolve o prazer da leitura. Dele: "Pensar não é ter as informações. Pensar é o que se faz com as informações".

E há algo muito importante sobre a arte de não ler: o que ler? Literatura faz bem pra alma, traz descobertas, conhecimento de outras culturas e muito mais. Indispensável para todos. Mas é fundamental ler coisas que questionam e desnudam o mundo. Desenvolver a imaginação é bom. Ela sozinha, porém, sem cultura, conhecimento, deixa a pessoa com asas, mas sem pés. Um estudante de Jornalismo tem que ser estimulado a ser crítico dos fatos que nos rodeiam, não crítico literário (pode ser depois, como opção profissional).

Ler exige "ruminar" para tomar para si o que se lê. É como a comida: ela não nos nutre pelo comer, mas pela digestão. Nessa "ruminação" entram os valores de cada um, a procura do contraditório, a busca de outras fontes. Enfim, a procura da verdade. Paulo Freire diz que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Assim, o sentido que cada um tem do que lê depende de sua visão de mundo.  Num mesmo texto lido por pessoas diferentes, cada um lerá à sua maneira, conforme sua "bagagem". Quem só se prende a livros, não lê o mundo. Vê o caminho do autor, o que ele viu nesse caminho, mas é preciso usar os próprios olhos, distinguir o verdadeiro do falso, o bom do mau.

Isso se estende, da mesmíssima forma, a jornais e revistas. As pessoas precisam de verdades e, se leem "verdades" que elas querem, o veículo é adotado como líder.  O que ele disser direciona o pensamento e a ação de seus seguidores. Como no Brasil a grande mídia é um partido de oposição (declaração dos próprios), ocorre a monomania, o pensamento único, que absorve a mente de seus leitores/ouvintes. Afinal, as pessoas tendem a assimilar "o que lhes interessa" (na verdade é o que interessa ao veículo). Explora-se o ferino pensamento schopenhaueriano de que "Quem escreve para tolos sempre encontra um grande público". Felizmente, a cada pouco, diminui o número dos que caem nessa.

A boa leitura pode despertar em nós qualidades que não sabíamos que tínhamos. Para tê-la, é preciso desenvolver a arte de não ler, que consiste em "nem sequer folhear o que ocupa o grande público. Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim,  porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos." (Schopenhauer).

No jornal GGN: https://jornalggn.com.br/blog/angelo-edval-roman/a-arte-de-nao-ler

angeloroman@terra.com.br    -     www.angeloroman.blogspot.com


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