Diz
a sabedoria popular que um homem só está completo quando planta uma árvore,
escreve um livro e tem um filho.
O autor desse ditado deve ter sido um escritor. Criou um adágio
para si próprio. O Tom Jobim poderia ter dito que o homem só está completo
quando faz uma música. Um pastor da Teologia da Prosperidade diria que só está
completo quando tiver casa e um carro na garagem. E assim por diante.
Eu mesmo, e milhões de pessoas, jamais vamos escrever um livro.
Então, morreremos lamentando não ter sido uma pessoa completa?
Eu preservaria no ditado o plantio da árvore, que tanto bem traz
à humanidade. Aliás, é bem mais fácil plantar árvore do que derrubar. Preservaria
ter um filho. Também, é bem mais fácil fazer filho do que evitar. E mais
gostoso. Evitar dá um trabalho danado!
Tiraria o livro. Escrever um bom poucos têm condições de fazer.
Difícil mesmo é ler e entender os livros.
Colocaria como condição para se sentir completo cuidar dos pais
quando eles estiverem velhinhos e não conseguirem mais se cuidar. Isso é um
ciclo normal da vida. O difícil é cuidar
de pais que abandonaram ou maltrataram os filhos. Nesses casos, seria
dispensável essa etapa. Mas fica faltando para completar o ciclo.
Cuidar dos pais é uma oportunidade que nem todos têm. Eles podem
morrer cedo. Muitos deles querem ficar em suas próprias casas, não querem morar
com filhos. Isso tem que ser respeitado na medida do possível. Na casa deles, reconhecem
sua cadeira, sua TV, seu sofá, sua cama. Ficam mais tranquilos.
Uma pessoa cuidadora pode ficar com os idosos, mas a presença
dos filhos diariamente é fundamental. E quando a cuidadora tem que sair, para
férias ou outra coisa, o ideal é os filhos a substituírem. Uma oportunidade,
não um castigo. Daí é que pode ou não haver a predominância do amor, da
paciência, do respeito: o filho vira pai (ou mãe). É preciso levar ao banheiro, fazer a higiene,
dar banho, trocar a roupa, lavar, preparar a comida, cuidar dos remédios, etc.
Se a mãe fez isso com a gente quando éramos pequenos, normal fazer o mesmo com
ela.
Visitar os pais velhinhos, arrumadinhos, cheirosinhos, penteados
e dizer que os ama é uma coisa. Cuidar 24 horas por dia é outra. Daí o amor
verdadeiro se revela. A coisa mais importante que existe para quem tem demência
são os cuidados da família e de pessoas próximas.
Meu pai e tios morreram muito cedo, pela vida que tiveram. A
primeira pessoa que ficou velhinha na família foi minha mãe. Estamos tendo a
experiência de lidar com a demência. Ela tem cuidadora, mas diariamente um
filho vai uma ou mais vezes vê-la. Quando a cuidadora sai em férias, os filhos
se revezam nos cuidados 24 horas por dia (à noite ela dorme bem). Quanto aprendemos! E quanto vemos que ainda
ficamos em débito com ela! Pelo pouco que lhe fazemos, ela agradece e diz que está nos
dando muito trabalho. Oferece comida, como se tivesse condições de cozinhar.
Nós é que lhe preparamos as refeições. Pergunta se temos cobertas para dormir,
se a cama está arrumada, etc.
Sem essa oportunidade, não completaríamos o ciclo da vida. Claro,
numa visão particular minha, tão particular quanto quem disse que o ciclo se
completa com escrever um livro.
Não tenho ideia de como será quando ela chegar ao estado
avançado de demência. Daremos conta? Teremos o mesmo desprendimento e
paciência?
Sabemos que ela, mesmo com dificuldade para reconhecer as
pessoas, sente-se bem quando recebe o carinho de alguém. Ela sente o prazer do momento, que é
muito importante. Apenas não tem a
alegria de lembrar depois. Com certeza, algum registro bom permanece lá no
fundo. Fica bem quando conversamos com
ela, quando sentamos ao seu lado no almoço.
O médico Eben Alexander narra em livro uma experiência
de quase-morte (EQM) que vivenciou numa
UTI. Quando voltou para esta vida, falou de como foi importante para ele ter sempre um
familiar segurando sua mão, como uma âncora, mesmo não sentindo. Imagine isso para
quem está vivo, ainda que com demência.
Cada um pode escolher três coisas, ou mais, ou menos, para se
sentir completo. A de escrever um livro, principalmente, é muito pessoal. A de
cuidar dos pais também.
angeloroman@terra.com.br No jornal:
http://www.ilustrado.com.br/jornal/ExibeNoticia.aspx?NotID=64359&Not=Escrever%20um%20livro%20ou%20cuidar%20dos%20pais?
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